Carta ao Sempre Um Papo: 2025, o ano em que a literatura voltou ao centro

Carta ao Sempre Um Papo: 2025, o ano em que a literatura voltou ao centro

Há um tipo de notícia boa que não costuma virar manchete. Não é escândalo, nem tragédia, nem guerra de versões — é trabalho. Trabalho persistente, paciente, quase sempre invisível. E, no entanto, é desse tipo de notícia que a cultura brasileira mais precisa: um projeto que atravessa décadas sem se acomodar; que não se repete, se reinventa; que não se fecha numa bolha, se expande; que não se curva, reconhece o protagonismo devido. Em 2025, o Sempre Um Papo fez justamente isso — e merece ser celebrado.

O balanço do ano é, por si só, um retrato de vitalidade: presença ampliada em quatro estados, quase cem mil pessoas alcançadas diretamente, uma programação ampla e diversa, gratuita e acessível, com atividades viabilizadas pela Lei Rouanet e compartilhadas nos canais dos projetos. É o tipo de número que impressiona — mas que só faz sentido quando a gente olha para o que ele representa: gente reunida em torno de livros, ideias, debates, perguntas que não cabem em hashtags e respostas que não se resolvem em 280 caracteres.

Em Belo Horizonte, onde no ano que vem o Sempre Um Papo chega aos 40 anos de história, o projeto manteve a parceria com a Cemig e seguiu ocupando a Biblioteca Pública com lançamentos e encontros que recolocam a literatura brasileira no lugar que ela merece: no centro da vida cultural da cidade. Porque, no fim, é disso que se trata: o que um país escolhe ouvir quando decide ouvir alguma coisa — e o Sempre Um Papo insiste, com teimosia civilizatória, em fazer a gente ouvir escritores, livros, ideias.

Ao mesmo tempo, 2025 foi o ano em que o projeto reafirmou seu alcance nacional. Manteve ciclos regulares em São Paulo e Paracatu; retomou Brasília, na Caixa Cultural — com mediação deste colunista e de Cibele Tenório — e voltou ao Rio de Janeiro com o “Palavra Acesa”, no Museu do Amanhã, reacendendo aquela chama rara: a do encontro público em que ninguém entra para destruir o outro, mas para construir uma conversa.

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FliPetrópolis (./Divulgação)
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E então vieram os festivais — quatro grandes marcos que, de certo modo, sintetizam o que o Sempre Um Papo faz há quase quatro décadas: criar uma ponte real entre escritores e públicos, fora dos eixos previsíveis, em territórios diversos, com a literatura como motor de pertencimento. Em 2025, foram quatro: a Fliparacatu, com a Kinross; a Fliaraxá, com Itaú, CBMM e Bem Brasil; a Flitabira, com a Vale; e a Flipetrópolis, com a GE Aerospace. Araxá, Paracatu, Itabira, Petrópolis: quatro cidades, quatro paisagens, quatro públicos — e a mesma aposta. A de que a comunidade se fortalece quando se reconhece também pelas histórias que lê, conta e debate. Além de Afonso Borges, a curadoria contou com Bianca Santana Jefferson Tenório e Sérgio Abranches.

A entrega do Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano, da UBE/SP, a ativista antirracista e feminista Sueli Carneiro foi o momento mais forte da segunda edição do Flipetrópolis. Imaginem: presentes Conceição Evaristo, que ganhou em 2023 e Míriam Leitão, de 2024, entregando o Prêmio, em uma noite inesquecível. A jornalista Flávia Oliveira foi a oradora, ao lado de Eliane Alves Cruz e Lívia Sant’Anna Vaz. Jamil Chade fez as honras da casa. Estiveram presentes, além do presidente Ricardo Ramos Filho, toda a diretoria da UBE/SP. A cerimônia reafirmou o diálogo entre literatura, filosofia, direitos humanos e justiça social, alinhando o legado intelectual de Sueli Carneiro ao espírito do festival.

Mas o que talvez defina melhor 2025 é o modo como o Sempre Um Papo ampliou sua vocação sem perder o foco: literatura como ferramenta de inclusão, educação e justiça, como os concurso de redação. Vieram projetos especiais que, num país que naturalizou desigualdades, funcionam como lembretes do que a cultura pode fazer quando não serve apenas para entreter, mas também para reparar. “Muros Invisíveis — Afroempreendedores”, em Paracatu, celebrou histórias de protagonismo afrodescendente, via Plataforma Semente do Ministério Público de Minas Gerais. O “Palavra Justa” avançou sobre um território que quase ninguém quer enxergar: bibliotecas prisionais e programas de remição de pena pela leitura, em convênio com DEPEN e SejuspMG. E o “Clube do Livro — Letramento Racial”, coordenado por Madú Costa, insistiu em algo que o Brasil ainda resiste em aprender: literatura afro-brasileira não é nicho, é fundamento.

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E houve, ainda, a grande inovação do ano: o projeto Sempre Um Papo — TCE Cultural, um programa que articula literatura, pensamento crítico e gestão pública, trazendo para o debate amplo assuntos prioritários do Tribunal de Contas do Estado, com patrocínio da Copasa. É uma ideia simples — e, por isso mesmo, revolucionária: se o dinheiro público é de todos, a conversa sobre o público também deveria ser.

No meio de tanta coisa, o Mondolivro — podcast diário dedicado à literatura e ao pensamento contemporâneo — seguiu firme, provando que constância também é uma forma de resistência.

Há quem confunda cultura com ornamento. O Sempre Um Papo, em 2025, lembrou que cultura é infraestrutura. Uma das poucas capazes de produzir uma espécie de milagre cotidiano: reunir desconhecidos num mesmo espaço para conversar — e sair dali um pouco mais capaz de imaginar o outro. Numa época em que a vida pública virou ringue e o debate virou caça, isso não é pouco. Isso é muito.

PS – Em 2026, o Sempre Um Papo completa 40 anos. É um aniversário redondo — e não por nostalgia, mas por futuro. Porque o melhor elogio que se pode fazer a um projeto cultural desse tamanho é que ele não parece cansado. Ao contrário: parece ter encontrado, justamente agora, uma nova forma de crescer sem perder a alma. Parabéns ao Sempre Um Papo — pelo que fez em 2025, pelo que construiu desde 1986, e pelo que ainda pode fazer. A literatura agradece. E o país também, mesmo a parte que não sabe.

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