A pressão russa que levou chefe de fábrica de armas a se queimar vivo diante do Kremlin

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Em meio a um conflito dispendioso com a Ucrânia desde fevereiro de 2022, a Rússia tem pressionado fabricantes de equipamentos de defesa a aumentar a produção. Uma investigação da agência de notícias Reuters, publicada nesta terça-feira, 23, mostra que o Kremlin tem ameaçado fornecedores com penas de prisão caso não cumpram prazos e obrigações contratuais, gerando cenário de pressão permanente.
As tensões envolvendo o Estado e chefes de fábrica são exemplificadas por um discurso do presidente da Comissão Militar-Industrial, Dmitry Medvedev, em março de 2023, durante uma reunião com líderes da indústria. “Colegas, lembrem das palavras do generalíssimo”, afirmou Medvedev, antes de ler um telegrama do notório ditador Josef Stalin datado da II Guerra Mundial, no qual dizia que fabricantes malsucedidos seriam “esmagados como criminosos”.
Desde então, ao menos 34 pessoas foram indiciadas por “obstrução de ordens do Estado” desde o início do conflito, incluindo 11 chefes de empresas e dois executivos seniores. Inicialmente, as ameaças de Medvedev estavam lastreadas em uma lei de 2017, que tornava crime prejudicar um contrato de defesa para ganho pessoal, com pena de até 10 anos. No entanto, a lei foi alterada em 2022, após a invasão à Ucrânia, passando a incluir no rol de crimes a recusa em assinar um contrato de defesa ou a incapacidade de cumprir prazos.
Um dos alvos de processos foi Vladmir Arsenyev, chefe do Instituto Central de Pesquisa Científica Volna, que produz dispositivos de comunicação utilizados em tanques de guerra. Arsenyev, pressionado e próximo à falência, ganhou os holofotes em 26 de julho de 2024, quando ateou fogo ao próprio corpo em plena Praça Vermelha: do lado de fora do Kremlin, perto do mausoléu do fundador do Estado soviético, Vladimir Lenin, ele despejou gasolina sobre o próprio corpo e acendeu as chamas.
Apesar das queimaduras graves, ele não morreu e conversou com a Reuters do hospital onde estava internado. “Como uma empresa que recebe pedidos crescentes, e atende a esses pedidos, está morrendo?”, questionou. Ele acrescentou que os problemas financeiros e legais da fábrica foram provocados por pessoas que enviaram denúncias infundadas às autoridades.
As dificuldades de Arsenyev e da Volna começaram em 2022, quando a a guerra na Ucrânia gerou um súbito aumento no número de pedidos de equipamentos de defesa. Embora isso tenha parecido positivo para os negócios em um primeiro momento, o cientista de 75 anos logo descobriu as dificuldades de realizar entregas nos prazos apertados do Ministério de Defesa russo, sob preços pré-fixados pela pasta.
Antes do conflito, a empresa fabricava, no máximo, 5 mil módulos eletrônicos para dispositivos de comunicação por ano. No entanto, em setembro de 2022, fechou um contrato para entregar mais de 50 mil módulos no ano seguinte, um aumento de dez vezes na sua produção. Para reformular sua produção e contratar novos funcionários, a Volna recebeu adiantamentos no valor de 80% de alguns contratos, mas já em 2023, começaram os atrasos nas entregas e as rusgas entre executivos seniores. Um dos acionistas minoritários, Sergei Mosiyenko, disse à Reuters ter denunciado ao Kremlin a dificuldade no cumprimento de prazos. “O Ministério da Defesa é o cliente, e eles estão sempre certos”, afirmou.
De acordo com a empresa responsável por montar os dispositivos de comunicação, a Luch Factory, o atraso no fornecimento por parte da Volna prejudicou o Exército. As informações foram divulgadas no relatório anual da Luch de 2023, mas não especificam qual o tamanho dos pedidos ou quanto tempo demoraram a ser entregues.
Arsenyev nega os atrasos. Segundo ele, além dos problemas envolvendo a produção, uma disputa sobre o preço dos componentes, determinados pelo Ministério da Defesa, fez com que a Volna sofresse com escassez de recursos. Em setembro de 2023, o ministério informou ao chefe da fábrica que cortaria pela metade o valor a ser pago pelos módulos. Os problemas levaram ao congelamento de contas bancárias, por atraso no pagamento de impostos, e, em seguida, falta de dinheiro para os salários dos funcionários, resultando em processos judiciais.
“De repente, nos vimos perto da falência”, disse Arsenyev sobre o cenário catastrófico.
Oficiais de justiça russos foram convocados para recuperar o valor das dívidas em setembro de 2024, mas nenhum bem passível de apreensão foi encontrado. Para solucionar os problemas na linha de frente russa, a Luch teve que projetar e produzir sua própria versão dos componentes fabricados pela Volna. Em janeiro deste ano, ainda havia déficit de dispositivos de comunicação no front, de acordo com informações compartilhadas por um comerciante de equipamentos militares junto à Reuters.
